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Dano extrapatrimonial trabalhista

29/10/2019

A busca pela acepção da norma em harmonia com a ordem jurídica circundante

Isabella Tenório Ramos Garcia1

A Lei 13.467/2017, denominada Reforma Trabalhista, por intermédio da inserção de um novo título na CLT (Título II-A - Do Dano Extrapatrimonial, composto pelos artigos 223-A até 223-G, com seus diversos parágrafos e incisos), realizou uma das mais controvertidas modificações na Consolidação das Leis do Trabalho, que causou revolta e grande preocupação.

Ocorre que o Direito é um conjunto sistemático de regras e princípios jurídicos, formando um todo lógico, coerente e harmônico. A ideia de sistema faz com que o processo interpretativo situe a norma em análise no complexo normativo mais próximo, ao invés de tratá-la como uma realidade isolada e estanque.

Os métodos interpretativos - de hermenêutica jurídica - mais modernos são: o lógico-racional (compreensão da norma jurídica a partir do seu sentido lógico de forma não isolada e dentro do contexto normativo), o sistemático (integração da norma jurídica ao contexto do conjunto sistemático do Direito mais próximo) e o teleológico (observância dos fins sociais e humanísticos da norma) - e todos devem ser aplicados conjuntamente, observando-se os fins sociais da norma jurídica e do diploma legal, de modo que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse comum.

Dentre as principais inquietações introduzidas no Título II-A da CLT estão: a tentativa de exclusão das regras constitucionais e civilistas para aferição do dano imaterial (art. 223-A), a criação de um rol de bens imateriais juridicamente tutelados (arts. 223-C e 223-D) e a tarifação da indenização por dano extrapatrimonial (art. 223-G, §1º).

A expressão “apenas” contida no caput do artigo 223-A da CLT deixa clara a intenção do legislador de não aplicação de outras normas de mesma hierarquia acerca do dano extrapatrimonial trabalhista.

Todavia, como bem asseverou Godinho2:

“[...] a interpretação lógico-racional, sistemática e teleológica do preceito legal demonstra, às escâncaras, que há um conjunto normativo geral mais forte, superior, dado pela Constituição de 1988 e pelas normas internacionais de direitos humanos vigorantes no Brasil, que incide, sem dúvida, na regulação da matéria abrangida por esse título especial agora componente da Consolidação.”

Anteriormente à entrada em vigor da Lei da Reforma Trabalhista, a ausência de normatização específica do dano extrapatrimonial não trazia qualquer dificuldade ou problema relevante, em vista da indubitável aplicação das regras constitucionais e civilistas existentes para os casos de danos congêneres na seara do trabalho.

Até o advento da Lei nº 13.467/2017, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) era assente e pacífico em aplicar a uniformidade do sistema jurídico referente à responsabilidade civil: a reparação integral consagrada no texto constitucional, artigo 5º, incisos V e X e os dispositivos do Código Civil, nos moldes do direito do consumidor, direito civil, direito administrativo e demais ramos jurídicos. Ao assim proceder, trazia segurança jurídica e coerência sistêmica.

Não obstante, o legislador ordinário, em um esforço para construir um sistema jurídico trabalhista apartado do ordenamento jurídico nacional, tentou elevar a CLT a um patamar normativo supra hierárquico, com regramento próprio e exclusivo para o dano extrapatrimonial na esfera laboral. Ou seja, pretendeu construir um verdadeiro regime de exceção ao mundo do trabalho.

Nesta toada, ressalta-se que a violação à esfera extrapatrimonial do cidadão empregado não é inferior à do cidadão consumidor, contratante, servidor público, empresário e, portanto, merece ser tratada com isonomia. 

Ora, ao criar uma norma trabalhista de exceção mais gravosa do que a do direito comum, torna-se ilógica a própria razão de ser da regra jurídico-trabalhista, que ganhou autonomia jurídica, metodológica e científica da civilista justamente para melhor tutelar o cidadão empregado em uma relação em que é, sem dúvidas, hipossuficiente.

Ademais, também parece que a intenção do legislador foi de ser taxativo nos bens imateriais que, uma vez lesionados, podem gerar o dever de indenizar (artigo 223-C). 

Ocorre que, da mesma forma colocada acima, a interpretação jurídica nos permite concluir que se trata de elenco meramente exemplificativo, uma vez que a Constituição da República combate "quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, IV, da Constituição da República), ao invés de apenas aquelas escolhidas pela lei reformista. 

Aliás, a criatividade humana e as inovações sociais não têm limites, sendo arriscado – e falho – estabelecer um rol taxativo para a questão.

No mesmo sentido é o Enunciado nº 6, aprovado na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho da Anamatra, segundo o qual:

“ENUNCIADO 6. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS: LIMITES.
É de natureza exemplificativa a enumeração dos direitos personalíssimos dos trabalhadores constante do novo artigo 223-c da CLT, considerando a plenitude da tutela jurídica à dignidade da pessoa humana, como assegurada pela constituição federal (artigos 1º, iii; 3º, iv, 5º, caput, e §2º).”

Neste diapasão, a ilustre doutrinadora Vólia Bomfim[2], traz um exemplo relevante para elucidar a questão, vejamos:

“Ora, não poderá um empregado ser indenizado por ter privacidade violada por que a lei não a mencionou? Ressalto que o inciso X do art. 5.° da Constituição menciona expressamente o direito de indenização pela violação da privacidade, logo, não pode a lei (CLT) infraconstitucional limitar sua aplicação. Defendo, por isso, a não taxatividade dos bens imateriais, seja para a pessoa física, seja para a jurídica. [...]”

Não menos importante mencionar que o legislador se esforçou ao compilar nove grandes temas da hostilidade ao ser humano, mas, de plano, se esqueceu de assuntos muito delicados e recorrentes no âmbito laboral, como a dispensa de pessoas por idade avançada ou por deficiência, a discriminação de gênero, o racismo e os assuntos ligados à nacionalidade.

E mais, a reforma ignorou o evento “morte no ambiente de trabalho”, que também desafia pretensão a indenização por danos morais em ação ajuizada pelos entes familiares.

Assim, a única e aceitável conclusão que podemos tirar é de que o rol que trata o artigo 223-C é meramente exemplificativo, e de que todo e qualquer bem imaterial, inerente à dignidade da pessoa humana do trabalhador, em todas as suas nuances, deve ser amparado juridicamente.

Finalmente, o ponto mais controvertido deste título foi a apresentação dos valores da tarifação.

Muito embora tenha havido o cuidado de apresentar doze ponderações que o julgador deve fazer antes da estipulação do valor (incisos do artigo 223-G), o fato é que as indenizações têm de caber em uma das quatro faixas criadas pela reforma – leve, média, grave e gravíssima – sem prejuízo da reincidência, se esquecendo, o legislador, que a Constituição da República afasta o critério de tarifação da indenização por dano moral, em seu artigo 5º, inciso V, ao mencionar, enfaticamente, a noção de proporcionalidade.

Para piorar a situação, o legislador utiliza o salário contratual do ofendido como base de cálculo para a indenização, o que faz, por esse padrão, que a dor do pobre seja menor do que a dor do rico, independentemente da lesão.

Quanto à reincidência, o legislador somente admite-a se for entre as mesmas partes (pasmem). Ora, a reincidência diz respeito à conduta do agressor de voltar à delinquência mesmo depois de punido, sendo grotesco imaginar que a reincidência seja voltar a delinquência contra a mesma vítima. 

Neste sentido já se manifestou Homero Batista3:

“[...], é como se o legislador dissesse que o juiz não pode levar em consideração a repetição dos mesmos fatos na mesma fábrica, mas com vítimas diferentes; apesar de todos esses argumentos eloquentes, o Senado Federal concordou em aprovar o texto tal como proposto.”

Todavia, novamente aqui, a interpretação lógico-racional, sistemática e teleológica desses dispositivos legais rejeita totalmente a tarifação efetuada pela nova lei, considerando a tabela ali exposta apenas como um parâmetro para a fixação indenizatória pelo magistrado, mas sem prevalência sobre a noção jurídica advinda do princípio da proporcionalidade-razoabilidade.

Uma leitura a luz da Constituição nos leva a crer que os parâmetros trazidos pelo §1º do art. 223-G da CLT, são meros indicadores, e não limites máximos ou mínimos dirigidos ao julgador, sob pena, inclusive, de afronta ao livre exercício da jurisdição.

Se assim não fosse, completos abusos seriam ratificados pela norma (que deveria ser protetora), como cita Godinho:

“a) admitir que a ordem jurídica diferencie as afrontas morais em função da renda das pessoas envolvidas (art. 223-G, § 1º, I, li, III e N); b) admitir que a indenização devida por uma pessoa humana a uma empresa (e vice-versa) se mede pelos mesmos parâmetros monetários do cálculo de uma indenização devida por uma empresa (independentemente de ser líder mundial ou continental de mercado, ou não) a uma pessoa humana (art. 223-G, § 2º); c) admitir que a reincidência cometida por certa empresa (que é um ser coletivo, relembre-se) somente se computa se for perpetrada contra a mesma pessoa física (§ 3º do art. 223-G).”

Portanto, conclui-se que o grande aspecto de destaque no Título II-A da CLT, segundo já constatou Godinho, consiste na tentativa sutil de descaracterizar um dos avanços humanísticos e sociais mais relevantes da Constituição da Republica de 1988, que é o princípio da centralidade da pessoa humana na ordem social, econômica e jurídica, com os seus diversos princípios correlatos, capitaneados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Godinho ainda completa:

“O novo Título II-A da CLT tenta descaracterizar esse avanço cultural e jurídico, por meio de nítida equalização de situações e conceitos jurídicos distintos. Segundo a nova Lei, não cabe mais falar em dano moral, dano estético e correlatos: simplesmente despontam os danos extrapatrimoniais, quer de trabalhadores, quer de empresas, que se tomam bastante similares e equivalentes, aparentemente desvestidos da força constitucional inspiradora deflagrada em 1988 em benefício da pessoa humana.”

Deste modo, é preciso que as inovações trazidas pela Lei 13.467/2017, com textos aparentemente in operarios sejam superadas mediante a interpretação científica dos dispositivos analisados, com o concurso dos métodos lógico-racional, sistemático e teleológico fornecidos pela Hermenêutica Jurídica, ao invés de se ater o intérprete à mera leitura gramatical e literalista dos novos preceitos.

Assim, as adequações interpretativas, propiciadas pelas técnicas dessa filosofia, podem atingir resultados satisfatórios se equilibrados e contextualizados os dispositivos do novo Título II-A da Consolidação das Leis do Trabalho com a ordem jurídica nacional, sobretudo com preceitos fundamentais previstos na Constituição e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Referências bibliográficas

ANAMATRA. 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho. Enunciado aprovado – ementas e inteiro teor das teses (Comissão 2). Disponível em: http://www.jornadanacional.com.br/listagem-enunciados-aprovados-vis2.asp?ComissaoSel=2. Acesso em: 17 dez. 2018.

BRITO, Maurício Ferreira. Regime de exceção do dano extrapatrimonial decorrente da relação de trabalho. Publicado em: 29.03.2018. Disponível em: https://www.jota.info/?pagename=paywall&redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reforma-trabalhista/regime-de-excecao-do-dano-extrapatrimonial-decorrente-da-relacao-de-trabalho-28032018. Acesso em: 17 dez. 2018.

CASSAR, Vólia Bomfim. Comentários à reforma trabalhista. São Paulo: Método, 2017.

DELGADO, Maurício Godinho. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017.

SILVA, Homero Mateus da. Comentários à reforma trabalhista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.


1 Advogada. Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade Escola Paulista de Direito (FACEPD, SP).

2 DELGADO, Maurício Godinho. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017.

3 CASSAR, Vólia Bomfim. Comentários à reforma trabalhista. São Paulo: Método, 2017.

4 SILVA, Homero Mateus da. Comentários à reforma trabalhista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

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