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Empregado hipersuficiente

30/07/2019

Uma análise da (in) aplicabilidade deste novo conceito ante a ótica protecionista do Direito do Trabalho

Isabela Fernandes Pereira1
Me. Leonardo de Oliveira Rezende
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I - Considerações iniciais.

A Lei 13.467/2017, publicada em 14 de julho de 2017, aprovou a intitulada “Reforma Trabalhista”, que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017.

A referida lei foi responsável pela mais profunda alteração ocorrida na CLT desde a sua promulgação, em maio de 1943, o que resultou em um expressivo impacto nas relações laborais.

Dentre suas diversas inovações, a Reforma Trabalhista instituiu a figura do empregado “hipersuficiente”, assim compreendido como o trabalhador que possui diploma de curso de nível superior e percebe remuneração igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

Em conformidade com a nova legislação, este empregado tem o poder de negociar as cláusulas do seu contrato de trabalho e estas terão a mesma eficácia de normas coletivas, podendo, até mesmo, se sobrepor à lei, o que contraria os princípios basilares do Direito do Trabalho.

Destarte, o presente estudo tem por escopo explorar a figura do trabalhador hipersuficiente e suas nuances, analisando esse novo conceito sob a ótica dos princípios deste ramo específico do direito e do ordenamento jurídico hodierno.

II - Um novo conceito na CLT: o empregado hipersuficiente.

O Direito do Trabalho elegeu como seu princípio norteador o princípio da proteção ao empregado, já que este se encontra em posição de inferioridade e vulnerabilidade frente ao empregador.

Entretanto, sob o argumento de que os desiguais devem ser tratados desigualmente, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator do projeto da Reforma Trabalhista na Câmara, teve a ideia de criar a figura do trabalhador hipersuficiente.

O deputado explica no relatório:

[...] não se pode admitir que um trabalhador com graduação em ensino superior e salário acima da média remuneratória da grande maioria da população seja tratado como alguém vulnerável, que necessite de proteção do Estado ou de tutela sindical para negociar seus direitos trabalhistas.

Tal ideia foi defendida por Ricardo Ferraço (PSDB-ES), relator da Reforma Trabalhista no Senado, aduzindo que a medida seria um “espaço importante de negociação”. No relatório assevera ainda que:

Profissionais disputados no mercado de trabalho que, por possuírem considerável poder de veto e poder de barganha, podem negociar com autonomia as condições de seu contrato, sem a tutela de sindicato.

Assim, a Reforma Trabalhista inaugura a figura do empregado hipersuficiente que, em conformidade com o parágrafo único do artigo 444 da CLT, é aquele “portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”, sendo-lhe permitido estipular livremente as cláusulas do seu contrato de trabalho, vejamos:

Art. 444, CLT - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social

Nota-se que o dispositivo legal dispõe que a livre estipulação aplica-se às hipóteses previstas no artigo 611-A da CLT, de modo que esta terá prevalência sobre a lei quando dispuser sobre: pacto quanto à jornada de trabalho; banco de horas anual; intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores à seis horas; adesão ao Programa Seguro-Emprego; plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança; regulamento empresarial; representante dos trabalhadores no local de trabalho; teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual; modalidade de registro de jornada de trabalho; troca do dia de feriado; enquadramento do grau de insalubridade; prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo; e participação nos lucros ou resultados da empresa.

Com base nessas premissas, conclui-se que a este trabalhador será permitida, até mesmo, a negociação de sua remuneração. Trata-se de silogismo, senão vejamos.

A nossa Constituição em seu artigo 7º, inciso VI, garante aos trabalhadores a irredutibilidade salarial, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo, enquanto o parágrafo único do artigo 444 da CLT dispõe que a negociação entre empregador e empregado hipersuficiente tem a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos.

A propósito, o artigo 611-A da CLT, que traz algumas hipóteses em que empregador e empregado poderão pactuar livremente, preconiza, ainda, que esta pactuação tem prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuser sobre: remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual; prêmios de incentivo em bens ou serviços; bem como participação nos lucros ou resultados da empresa. 

Neste ponto, indaga-se: como é possível que um empregado tenha o poder de renegociar sua própria remuneração? O legislador reformista simplesmente ignorou o princípio da irredutibilidade salarial?

Além disso, nos contratos de trabalho de empregados cuja remuneração for superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social (sem a necessidade de diploma de nível superior), será permitida a pactuação de cláusula compromissória de arbitragem, consoante prevê o artigo 507-A da CLT, in verbis:

Art. 507-A, CLT.  Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa, nos termos previstos na Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.

Diante do exposto acima, pode-se aferir que a hipersuficiência foi criada apenas com fundamento em critérios econômicos (alta remuneração) e técnicos (diploma de nível superior).

Todavia, em que pese o alto salário e a formação acadêmica, tem este empregado condições de pactuar livremente com o seu empregador? Ademais, o fato de este se colocar sob a direção do empregador, por ser subordinado, já não o torna hipossuficiente?

III - Hipersuficiência x subordinação.

Inicialmente, esclarece-se que, para a configuração de uma relação de emprego, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação.

Ou seja, a subordinação é um elemento indispensável para a caracterização da relação empregatícia.

Aliás, alguns doutrinadores adotam a ideia de que esse seria o mais importante de todos os requisitos, sendo de fundamental importância compreendê-lo.

Mas, como a legislação não traz o conceito de subordinação, cabe à doutrina e à jurisprudência conceituá-la.

O termo “subordinação” é de etimologia latina e provém de sub, que significa baixo, e ordinare, que significa ordenar. Dessa forma, subordinação significa sujeição ao poder de outrem, submissão às ordens de terceiros, subalternidade hierárquica e dependência. 

Nesta senda, vale transcrever o posicionamento do doutrinador Luciano Martinez:

Subordinar (sub + ordinare) significa ordenar, comandar, dirigir a partir de um ponto superior àquele onde se encontra outro sujeito. A subordinação é, então, evidenciada na medida em que o tomador dos serviços (e não o prestador, como acontece no trabalho autônomo) define o tempo e o modo de execução daquilo que foi contratado. Entende-se como definição de tempo toda interferência do tomador dos serviços no que diz respeito ao instante de início e de término da atividade contratada, inclusive em relação aos momentos de fruição dos intervalos para descanso acaso existentes. Compreende-se, por outro lado, como definição de modo toda intercessão do tomador na maneira de ser operacionalizada a atividade contratada, resultando uma intromissão consentida pelo prestador nos meios por força dos quais serão alcançados os fins (os resultados da atividade contratada).3

Ainda, cumpre observar que, em que pese a legislação pátria adotar o termo “dependência”, a doutrina majoritária tem mantido o termo “subordinação”.

A propósito, historicamente, o termo “subordinação” já se subdividiu em vários conceitos, conforme bem elucida o ilustre doutrinador Amauri Mascaro Nascimento:

Para uns a subordinação é hierárquica, significando a aceitação, no próprio trabalho, das ordens de um superior; para outros a subordinação é econômica, entendendo‐se aquela que põe o trabalhador numa sujeição ou estado de dependência econômica; para outros a subordinação é jurídica, entendendo‐se como tal um estado de dependência real, produzido por um direito, o direito do empregador de comandar, de dar ordens, donde a obrigação correspondente para o empregado de se submeter a essas ordens; para outros a subordinação é técnica, assim se entendendo aquela que nasce entre indivíduos dos quais um exerce de modo constante uma atividade econômica e para exercício da qual eles se servem de pessoas que dirigem e orientam; finalmente, para outros, a subordinação é social, o esta‐ do decorrente de classe social.4

Entretanto, hodiernamente, prevalece a ideia da subordinação jurídica, já que esta decorre da lei e o empregado deve acatar a direção laborativa proveniente do empregador, ou seja, cabe ao empregador dirigir a prestação de serviços.

No que concerne ao conceito de subordinação jurídica, ensina Gustavo Cisneiros:

Subordinação jurídica – é a “pedra de toque” da relação de emprego. O contrato de trabalho tem essa peculiaridade, fator que o distingue dos demais: o empregado encontra-se juridicamente subordinado ao empregador. Não é simples subordinação técnica, pois o empregado pode até ser tecnicamente mais qualificado que o empregador; também não é simples subordinação econômica, pois o empregado pode ter maior patrimônio que o empregador. Estamos falando de subordinação jurídica, ou seja, subordinação imposta pelo direito. É o poder investido na pessoa do empregador, pelo direito, para que este dirija, oriente, fiscalize e, se for o caso, puna o seu empregado. O fundamento desse poder diretivo do empregador está no risco do negócio, assumido exclusivamente por ele (A alteridade, portanto, fundamenta o estado de subordinação jurídica do empregado). Ora, se o patrão arca sozinho com os prejuízos, nada mais justo que detenha o poder diretivo da relação jurídica.5

Dessa forma, independentemente da remuneração do obreiro, os poderes da relação de emprego estão nas mãos do empregador, podendo este aplicar penalidades ao empregado e dispensá-lo a qualquer momento, até mesmo sem justificativa.

Considerando essas premissas, como é possível que o empregado seja hipersuficiente e subordinado concomitantemente?

Com efeito, há juristas e profissionais militantes na área que sustentam que os trabalhadores hipersuficientes são até mais subordinados que os trabalhadores hipossuficientes, pois, para manterem o alto padrão financeiro, acabam se submetendo, ainda mais, às vontades do seu empregador.

Aliás, o medo do desemprego tende a ser mais acentuado entre os empregados com maior remuneração e formação técnica.

Por conseguinte, o empregado, pelo simples fato de estar subordinado, não poderia ser tratado em condição de igualdade com seu empregador, de modo que a figura do trabalhador hipersuficiente contradiz um dos pressupostos para a caracterização da relação empregatícia: a subordinação.

Ocorre que a Reforma Trabalhista optou por prestigiar o conceito de dependência econômica para criar a figura do trabalhador hipersuficiente, ignorando por completo a subordinação jurídica e o fato de que na relação entre empregado e empregador existem significativas e inegáveis diferenças.

IV - Modernização ou retrocesso social: aspectos críticos.

O Direito do Trabalho surgiu com o objetivo de limitar a exploração da força de trabalho humano, tendo como seu princípio basilar o princípio da proteção ao empregado, visto que este é considerado hipossuficiente e, consequentemente, o polo mais fraco da relação laboral.

Ou seja, sempre se adotou a ideia de que o empregador é a parte hipersuficiente da relação empregatícia, sendo a proteção ao hipossuficiente o alicerce deste ramo jurídico.

Isto porque, historicamente, o princípio da autonomia da vontade, que rege o Direito Civil, foi incapaz de garantir um equilíbrio nas relações de emprego.

Dessa forma, o Direito do Trabalho, além de assegurar melhores condições de trabalho e sociais ao empregado, consoante o caput do artigo 7º da Constituição, busca, ainda, promover um equilíbrio entre os agentes da relação laboral, criando mecanismos e princípios para a proteção do trabalhador.

Um desses mecanismos de proteção ao trabalhador é a limitação da autonomia da vontade das partes, por meio da intervenção do Estado no contrato de trabalho e da criação de normas de ordem pública, que são cogentes, indisponíveis e irrenunciáveis.

Logo, ao permitir que um trabalhador negocie as cláusulas do seu contrato de trabalho e renuncie a direitos fundamentais, nota-se um desvirtuamento da função principal dessa grande área do direito.

Importante esclarecer que é patente a necessidade de se atualizar a legislação trabalhista, tendo em vista que o cenário hodierno está muito distante daquele em que a CLT foi promulgada, em 1943.

Todavia, não se pode admitir que, sob o pretexto de modernizar o ordenamento jurídico, o legislador reduza significativamente os mecanismos de proteção ao trabalhador.

Em consonância com o princípio da proibição do retrocesso social, é defesa a elaboração de leis que impliquem na redução de direitos fundamentais já assentados.

Vale mencionar que o TRT da 3ª Região, inclusive, já declarou um dispositivo inconstitucional por afrontar o princípio supra, editando a Súmula 66, in verbis:

Súmula n. 66, TRT 3
Arguição incidental de inconstitucionalidade. Intervalo interjornadas dos motoristas rodoviários. § 3º do Art. 235-c da CLT (Lei 13.103/2015)
É inconstitucional o § 3º do art. 235-C da CLT, na redação dada pela Lei 13.103/2015, por violação ao princípio da vedação do retrocesso social, previsto no caput do art. 7, violando ainda o disposto no inciso XXII deste mesmo art. 7º, art. 1º, incisos II, III e IV, art. 6º e § 10 do art. 144, todos da Constituição de 1988. (RA 260/2017, disponibilização: DEJT/TRT-MG/Cad. Jud. 18 e 19/12/2017, 8, 23 e 24/01/2018). [grifo nosso]

Além de afrontar o princípio da vedação ao retrocesso social, a figura do trabalhador hipersuficiente também caracteriza literal ofensa ao princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, pois, analisando o novo texto legal, entende-se que o empregado hipersuficiente pode dispor até mesmo de direitos garantidos constitucionalmente.

Ademais, ao conferir proteções distintas a trabalhadores que se encontram no mesmo estado de subordinação, a novidade legislativa ofende frontalmente o princípio da isonomia, previsto no caput do artigo 5º da Constituição da República, bem como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consubstanciado no artigo 3º, inciso IV, da nossa Constituição, que é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 

Destarte, é inconcebível que a nova regra prevaleça sobre os princípios em tela, principalmente sobre o princípio da proteção, já que este é responsável por estabelecer a lógica e a racionalidade deste sistema normativo.

Frisa-se também que a violação a princípios constitucionais representa uma afronta direita e literal à própria Constituição da República, nossa Lei Maior.

Não bastasse a ofensa à Constituição, outra norma afrontada pela nova disposição legal é a Convenção 111 da OIT, que veda qualquer tipo de discriminação em matéria de emprego e profissão, ocupação e condições de emprego.

Vale pontuar que a Convenção 111 da OIT foi ratificada pelo Brasil e trata-se de norma de caráter supralegal.

Corroborando toda a tese adotada, mister destacar o enunciado 49 da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho da ANAMATRA, a saber:

TRABALHADOR HIPERSUFICIENTE. ART. 444, PARÁGRAFO ÚNICO DA CLT
I - O PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 444 DA CLT, ACRESCIDO PELA LEI 13.467/2017, CONTRARIA OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO, AFRONTA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ARTS. 5º, CAPUT, E 7º, XXXII, ALÉM DE OUTROS) E O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO AO TRABALHO, ESPECIALMENTE A CONVENÇÃO 111 DA OIT. II - A NEGOCIAÇÃO INDIVIDUAL SOMENTE PODE PREVALECER SOBRE O INSTRUMENTO COLETIVO SE MAIS FAVORÁVEL AO TRABALHADOR E DESDE QUE NÃO CONTRAVENHA AS DISPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO AO TRABALHO, SOB PENA DE NULIDADE E DE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO (ARTIGO 9º DA CLT C/C O ARTIGO 166, VI, DO CÓDIGO CIVIL).

Pelo exposto, não parece razoável dividir a proteção jurídica entre trabalhadores classificados como “hipossuficientes” e “hipersuficientes”.

Ainda que o trabalhador possua um alto salário e diploma de nível superior, não há como contemplar efetivas condições de igualdade em uma relação onde há subordinação - ínsita a todo vínculo empregatício.

Isto é, a condição de hipossuficiente não se relaciona apenas com a remuneração ou a formação acadêmica do empregado, mas sim com o seu estado de subordinação ao empregador.

Oportuno mencionar ainda, à título de analogia, que o consumidor, independentemente de renda ou formação, é considerado como hipossuficiente e vulnerável em relação ao fornecedor, conforme prevê o artigo 4º, inciso I, do CDC.

Por conseguinte, é completamente desarrazoado que empregados sujeitos ao mesmo sistema de subordinação jurídica estejam submetidos a sistemas de proteção distintos.

Finalmente e não menos importante, pontua-se que a possibilidade de se instituir cláusula compromissória de arbitragem nestes casos, conforme prevê o artigo 507-A da CLT, representa clara restrição ao direito constitucional de acesso à Justiça.

Muito pertinente também esclarecer que a arbitragem não é compatível com o Direito do Trabalho, pois este trata de direitos indisponíveis e irrenunciáveis, enquanto a Lei de Arbitragem (Lei n. 13.129/2015) prevê, em seu artigo primeiro, que o instituto da arbitragem está adstrito a dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Noutro giro, ainda que perdure a ideia do empregado hipersuficiente, cumpre ressaltar que o contrato deverá cumprir seus requisitos de validade, devendo ser observadas as regras e princípios previstos no Código Civil, tais como: função social do contrato, probidade, boa-fé, liberdade de pactuação, dentre outros.

Nesta ótica, se não houver plena liberdade de negociação e a empresa possuir empregados hipersuficientes com contratos de trabalho idênticos, estaremos diante de contratos de adesão, o que, além de ser contrário a toda lógica do novo instituto em comento, pode ser extremamente prejudicial ao trabalhador, abrindo brechas para que o empregador manipule a condição do sujeito.

Todavia, salienta-se que o contrato de adesão pode ser declarado nulo em algumas hipóteses, como no caso de utilização compulsória de arbitragem (artigo 51, inciso VII, CDC).

Inclusive, o STJ já reconheceu a nulidade de cláusula compromissória de um contrato de adesão entre uma pessoa jurídica e uma franquia:

Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula (Resp 1.602.076/SP – Contrato de Franquia).

À vista disso, entende-se possível ser declarado nulo um contrato de adesão entre empregador e empregado, ainda mais ao considerarmos que o empregado se encontra em uma situação de vulnerabilidade muito maior do que uma franquia, como no caso acima.

Ademais, não sendo declarada a nulidade do contrato de adesão, pontua-se que, em conformidade com o artigo 423 do Código Civil, se houver cláusulas ambíguas ou contraditórias nesta espécie de contrato, adotar-se-á a interpretação mais favorável ao aderente, ou seja, ao empregado.

Tendo em vista todas essas considerações, sob qualquer ângulo que se analise a questão, conclui-se que a novidade legislativa em estudo representa um grande risco para os trabalhadores, visto que o empregador poderá utilizar-se desse novo instrumento para fraudar direitos básicos destes.

Isto, pois, conforme supra exposto, não se pode olvidar que, estando subordinado ao seu empregador, o empregado jamais terá liberdade plena para negociação, de modo que a vontade do empregador sempre prevalecerá.

Destarte, é totalmente descabida a tentativa do legislador de instituir neste ramo específico do direito a noção civilista de igualdade de condições entre os contratantes, pois fere toda a lógica protecionista que orienta o Direito do Trabalho.

V - Considerações finais.

O termo “reformar” traz a ideia de reconstruir, melhorar, renovar, aperfeiçoar, aprimorar, corrigir, consertar, endireitar, dentre outros. Ocorre que a Lei 13.467/2017, apelidada de “Reforma Trabalhista”, não condiz com esse propósito, representando um verdadeiro retrocesso social.

Dentre as suas diversas inovações, a Lei 13.467/2017, ao criar a figura do empregado hipersuficiente, deixa evidente a intenção legislativa de fazer prevalecer o capital sobre o trabalho, ferindo a ótica protetiva que norteia todo o ordenamento juslaboral.

O legislador reformista alegou ter como objetivo tratar desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Entretanto, um diploma de nível superior e um salário mais alto justificam esse tratamento? 

A bem da verdade, a Reforma Trabalhista está, injustificadamente, conferindo um tratamento distinto a empregados que estão no mesmo estado de sujeição, pois toda a classe trabalhadora, sem exceção, está subordinada ao seu empregador.

Assim, diante do temor ao desemprego, a vontade do empregador sempre prevalecerá, de modo que os sujeitos da relação empregatícia jamais estarão em patamar equitativo para negociação.

Isto é, um alto salário e formação acadêmica não são critérios suficientes para eliminar a desigualdade de forças que há entre as partes, pois não são capazes de afastar a subordinação, requisito de toda relação de emprego.

Portanto, é patente que a criação da figura do trabalhador hipersuficiente busca diminuir direitos e não ampliá-los, motivo pelo qual se encontra em completa dissonância com os princípios norteadores do Direito do Trabalho e com a nossa própria Constituição.

VI – Referências bibliográficas.

ANAMATRA. 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho. Enunciado aprovado e aglutinados – ementas e inteiro teor das teses (Comissão 4). Disponível em: <http://www.jornadanacional.com.br/listagem-enunciados-aprovados-vis2.asp?ComissaoSel=4>. Acesso em: 21 jul. 2018.

CISNEIROS, Gustavo. Direito do Trabalho Sintetizado. Método, 04/2016.

GADOTTI, Maria Lúcia Menezes. O hipersuficiente na nova legislação trabalhista. Migalhas. Publicado em: 23 jan. 2018. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI272793,71043-O+hipersuficiente+na+nova+legislacao+trabalhista>. Acesso em: 20 jul. 2018.

LEITE, Carlos Bezerra. Curso de direito do trabalho. 8ª edição. Editora Saraiva, 2017.

LORA, Ilse Marcelina Bernardi. A reforma trabalhista à luz dos direitos fundamentais: análise da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Revista Síntese: trabalhista e previdenciária, São Paulo, v. 29, n. 338, p. 33-46, ago. 2017.

MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do Trabalho - relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 7ª edição. Saraiva, 2/2016.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do Trabalho - História e Teoria, 29ª edição. Saraiva, 6/2014.

PRIMON, Ana Gabriela de Melo. Empregado “hipersuficiente”: mais uma aberração da Reforma Trabalhista. Justificando, mentes inquietas pensam Direito. Carta Capital. Publicado em: 01 fev. 2018. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/02/01/empregado-hipersuficiente-mais-uma-aberracao-da-reforma-trabalhista/>. Acesso em: 22 jul. 2018.

Procuradoria Geral do Trabalho. Nota técnica nº 08, de 26 de junho de 2017, da secretaria de relações institucionais do Ministério Público do Trabalho (MPT). Proposição: Projeto de lei da Câmara nº 38, de 2017. Disponível em <http://portal.mpt.mp.br/wps/wcm/connect/portal_mpt/204a16b7-0bca-409d-a7fd-6f9eec6bcc4f/Nota%2BT%C3%A9cnica%2Bn%C2%BA%2B08.2017.pdf?MOD=AJPERES&CONVERT_TO=url&CACHEID=ROOTWORKSPACE.Z18_395C1BO0K89D40AM2L613R2000-204a16b7-0bca-409d-a7fd-6f9eec6bcc4f-lVoXaqb>. Acesso em: 25 jul. 2018.

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1 Advogada. Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM, MG).

2 Advogado. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

3 MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do Trabalho - relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 7ª edição. Saraiva, 2/2016. p. 163

4 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho - História e Teoria, 29ª edição. Saraiva, 6/2014. p. 676.

5 CISNEIROS, Gustavo. Direito do Trabalho Sintetizado. Método, 04/2016. p. 22.

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