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Princípio da estabilidade financeira

20/06/2019

Incompatibilidade da regra introduzida pela Lei nº 13.467/2017 com os princípios norteadores do Direito do Trabalho

Me. Luiz Otávio de Oliveira Rezende1
Isabella Tenório Ramos Garcia
2

I – Considerações iniciais.

Perante as inúmeras problemáticas lançadas no meio jurídico em virtude da entrada em vigor da Lei n° 13.467/2017, popularmente conhecida como “reforma trabalhista”, uma em específico toma traços de temeridade, especialmente no contexto atual da sociedade (com direitos sociais ameaçados, desemprego em alta, insegurança nas relações de trabalho, dentre outros): o fim da incorporação da gratificação de função, esculpida na legislação trabalhista pré-reforma, consubstanciada na Súmula 372, item I, do Tribunal do Superior do Trabalho.

Muitos juristas e profissionais militantes na área se preocuparam com o objetivo do legislador de extirpar do contexto trabalhista uma parcela tão importante na subsistência dos obreiros que a percebem, o que se reflete nos inúmeros manifestos de inconstitucionalidade do dispositivo legal, uma vez que viola frontalmente o princípio da estabilidade financeira, pairando sobre o sistema normativo doméstico instabilidade e desproteção para com aquele que, historicamente, é parte hipossuficiente da relação de emprego.

À vista disso, o objetivo deste trabalho é percorrer a evolução do princípio da estabilidade financeira e analisar a alteração introduzida no §2º do artigo 468 da CLT sob a ótica dos princípios do Direito do Trabalho, alertando quanto sua inaplicabilidade no ordenamento jurídico vigente.

II – Comparativo entre o ordenamento jurídico passado e o atual.

Nas relações contratuais de emprego, existem situações em que o empregado é chamado a ocupar na empresa uma função diversa do seu cargo efetivo, recebendo uma gratificação por essa nova atribuição, ciente de que poderá ser dispensado da função gratificada a qualquer tempo, sendo revertido ao cargo efetivo.

Desde a publicação da Consolidação das Leis do Trabalho em 1943, existe expressa previsão (artigos 450 e 468) no sentido de assegurar ao empregado a contagem do tempo de serviço quando da reversão ao cargo anterior e de garantir ao empregador o direito de nomear e de dispensar o trabalhador da função a qualquer tempo, sendo certo que, em geral, o empregado, ao ser dispensado da função, perde a gratificação, reduzindo-se o patamar remuneratório. 

A redação original da CLT trazia o artigo 468 e o seu parágrafo único, in verbis:

Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

Parágrafo único - Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança.

De plano, compreende-se que as alterações contratuais lícitas eram aquelas consideradas não lesivas ao funcionário, realizada com mútuo consentimento e, conforme inteligência do parágrafo único, também aquela que consistia no retorno do obreiro ao cargo anteriormente ocupado à promoção para cargo de confiança.

Ocorre que a principal consequência interpretativa de tal artigo seguiu adiante: com o retorno ao cargo de origem, o empregado perderia a gratificação de função, considerada “salário-condição”, e suportaria enorme prejuízo remuneratório, por vezes injusto, desarrazoado e arbitrário? Assim, durante o lapso temporal entre a entrada em vigor da CLT e a publicação do enunciado sumulado, ocorreram acesos debates acerca da temática.

Duas correntes surgiram ao longo do tempo, as quais foram objetivamente descritas pelo ilustre Ministro João Oreste Dalazen em acórdão, ainda que de longa data, brilhante nas palavras, in verbis:

(...) Sustenta uma corrente que o empregado não tem estabilidade em cargos de confiança, porque ele pode ser revertido ao cargo efetivo, e a tanto estaria autorizado o empregador. Mas o empregador, dizem outros, não pode, ao mesmo tempo que reverte o funcionário ao cargo efetivo, suprimir-lhe a gratificação que já vinha recebendo ao longo de vários anos. (...). (Processo n. 141418-06.1994.5.01.5555. Relator: Ministro João Oreste Dalazen. Órgão Julgador: SDI-1 TST. DJ 13.12.1996)

Pois bem. Após anos e anos de discussões doutrinárias e jurisprudenciais, o TST aprovou a Súmula 209 em 19/09/1985, prevendo que a reversão do empregado ao cargo efetivo implicaria na perda das vantagens salariais inerentes ao cargo em comissão, salvo se nele houvesse permanecido dez ou mais anos ininterruptos. 

Todavia, referida Súmula foi cancelada em dezembro do mesmo ano, retomando as incessantes discussões acerca do assunto até que a Subseção de Dissídios Individuais I do c. TST, em 25/11/1996, editou a Orientação Jurisprudencial n° 45, no sentido de que a gratificação de função percebida por mais de 10 anos não poderia ser retirada dos vencimentos do obreiro caso este fosse afastado da função, salvo por justo motivo. 

Em 2003, a mesma Subseção de Dissídios editou a Orientação Jurisprudencial n° 303, a qual vedava a redução da gratificação de função nos casos em que o funcionário fosse mantido na função. 

Por fim, em 2005, houve a conversão das referida OJ’s na Súmula 372 do Tribunal Superior do Trabalho, senão vejamos:

GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO. SUPRESSÃO OU REDUÇÃO. LIMITES (conversão das Orientações Jurisprudenciais nos 45 e 303 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

I - Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira. (ex-OJ nº 45 da SBDI-1 - inserida em 25.11.1996)

II - Mantido o empregado no exercício da função comissionada, não pode o empregador reduzir o valor da gratificação. (ex-OJ nº 303 da SBDI-1 - DJ 11.08.2003)

Muito pertinente também colacionar o posicionamento do professor Maurício Godinho Delgado3, acerca da linha cronológica jurisprudencial sobre a temática:

"(...) A jurisprudência, contudo, também sempre buscou encontrar medida de equilíbrio entre a regra permissiva do parágrafo único do art. 468 mencionado e a necessidade de um mínimo de segurança contratual em favor do empregado alçado a cargos ou funções de confiança. A preocupação dos tribunais era de que a presença do empregado no cargo de confiança por longos anos tendia a produzir uma incorporação patrimonial e cultural efetivas, pelo obreiro, do parâmetro remuneratório próprio a esse cargo, tornando extremamente prejudicial a reversão e suas consequências. Nesse contexto, procurou a jurisprudência apreender na ordem jurídica uma fórmula que, embora preservando a direção empresarial sobre a condução das atividades laborativas (mantendo, portanto, a prerrogativa de reversão independentemente dos anos de ocupação do cargo), minorasse – proporcionalmente ao período de ocupação do cargo – as perdas materiais advindas da decisão reversiva. É o que se encontrou no antigo Enunciado 209 do TST: “A reversão do empregado ao cargo efetivo implica na perda das vantagens salariais inerentes ao cargo em comissão, salvo se nele houver permanecido dez ou mais anos ininterruptos”. Com o cancelamento da Súmula 209 (em novembro de 1985), a jurisprudência passou a oscilar entre os critérios temporais mais ou menos elásticos do que os 10 anos (verificando-se, até mesmo, decisões pela inviabilidade de qualquer garantia de estabilização salarial no contrato em tal caso). Entretanto, pela OJ 45 da SDI-I/TST, de 1996, confirmou-se o critério decenal para a estabilização financeira em situações de reversão: (…). Hoje tal critério está expresso na Súmula 372, I, do TST."

A edição da referida Súmula representa a uniformização do entendimento do TST e concretiza o princípio da estabilidade financeira, fundado nos princípios da irredutibilidade salarial (artigo 7º, VI, da Constituição), da proibição das alterações contratuais lesivas (artigo 468, da CLT), da proteção da confiança e da segurança jurídica (artigos 1º e 5º, XXXVI, da Constituição), da boa-fé objetiva (artigos 1º, III, e 3º, I, da Constituição) e, ainda, na natureza salarial da gratificação de função (artigo 457, § 1º, da CLT).

A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho construiu a Súmula 372 após anos de reflexão acerca das consequências prejudiciais da retirada de parcela salarial significativa para trabalhadores que exerceram, por longo tempo, cargos de confiança. Com a Súmula, buscou criar o ponto de equilíbrio entre a regra permissiva do dispositivo legal (jus variandi extraordinário) e a necessidade de mínima segurança contratual em favor do empregado e, por isso, indicou uma fórmula que, concomitantemente preservasse a direção empresarial (mantendo a prerrogativa da reversão independentemente dos anos de ocupação do cargo), e minorasse as perdas materiais advindas da decisão reversiva.

Ora, ocorre que depois de tantos estudos e avaliações de casos concretos, buscando extrair o melhor da norma, a reforma trabalhista traz a tona regra que contraria frontalmente os princípios elementares que foram base para a construção jurisprudencial firmada. Após poucos debates e possíveis lobbys de grandes interessados na reforma em questão, foi editada a Lei 13.467/2017 e, com ela inserido no artigo 468 da CLT o parágrafo 1°, que reproduz o antigo parágrafo único e o parágrafo 2°, este sim objeto de grande discussão no âmbito jurídico pátrio, em razão do retrocesso e violação de princípios, in verbis:

“[...]

§1º Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)

§2º A alteração de que trata o § 1o deste artigo, com ou sem justo motivo, não assegura ao empregado o direito à manutenção do pagamento da gratificação correspondente, que não será incorporada, independentemente do tempo de exercício da respectiva função. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) g.n.

III – Aplicação lesiva do §2º do artigo 468 da CLT no caso concreto.

A Lei 13.467/2017 desejou nitidamente sepultar a possibilidade de incorporação da gratificação de função dos trabalhadores ocupantes de cargo de confiança, sendo, portanto, norma lesiva ao contrato de trabalho.

Não se pode deixar de mencionar que a alteração delineada acima atinge, em grande escala, os empregados das empresas estatais, conforme já explanado pelo advogado Cândido Vieira4 quando da elaboração do Projeto de Lei 6.787-B de 2016.

Embora tal direito não seja exclusivo do empregado estatal, a incorporação da função gratificada à remuneração tem conotação especial para este segmento de trabalhadores, por servir como barreira protetora à utilização do “descomissionamento” como forma de pressão para atender interesses políticos.

Em regra, nas empresas estatais, ao prestar e obter aprovação no concurso público, o empregado ingressa no cargo percebendo a menor remuneração disponível no plano de cargos e salários para a carreira, independentemente de sua experiência anterior ou qualificação profissional. Com o decorrer do tempo, o empregado vai acumulando responsabilidades e experiências e, consequentemente, alcança funções gratificadas, aumentando sua remuneração e seu padrão de vida.

Ou seja, este empregado sempre terá o mesmo cargo efetivo, ainda que conte 10, 20 ou 30 anos de empresa, pois as “promoções” ocorrem dentro de funções gratificadas que, em tese, não representam aumento do salário-base, apenas do salário-condição materializado na gratificação de função.

Na legislação pré-reforma, um empregado nesta condição, que recebia gratificação de função por prazo igual ou superior a 10 anos, se sofresse um descomissionamento por iniciativa do empregador e sem justa causa, teria direito à incorporação, em sua remuneração, da gratificação de função, ou seja, seria vedada a supressão da gratificação com o retorno ao cargo efetivo.

Ocorre que a legislação atual veio para dizer exatamente o contrário e se opor a condição mais vantajosa já garantida ao trabalhador. 

A permissão de descomissionamentos sem incorporação autoriza que o gestor da empresa estatal reduza a remuneração de um empregado com uma longa trajetória para um nível salarial aproximado ao do iniciante na carreira. Isto é, com a vedação da incorporação, um empregado que já traçou um notório caminho no plano hierárquico da organização está suscetível a retornar ao menor nível da carreira, sem direito, sequer, a remuneração que fazia jus anteriormente.

Fato notório e relevante é que muitas vezes estes descomissionamentos não ocorrem por problemas de desempenho do empregado ou legítimo interesse corporativo, mas para acomodar arranjos políticos, o que vai de encontro ao direito a proteção do trabalhador esculpido em nossa Constituição.

O princípio da proteção é a direção que norteia todo o Direito do Trabalho, instruindo a criação e a aplicação das normas na busca de proteger a parte mais frágil na relação jurídica – o trabalhador – face a altivez do empregador.

A proteção do direito do trabalho destina-se à pessoa humana, conforme mostra o artigo 1º, III, da Constituição e surgiu para salvaguardar o trabalhador, visando o equilíbrio entre o capital e o trabalho, gerando direitos e obrigações recíprocas.

Portanto, diante da proteção constitucional dirigida a esta classe, a aplicação das regras infraconstitucionais devem-se amoldar as diretrizes em questão, não se admitindo simplesmente a aplicação nua e crua da letra da lei no caso concreto. 

IV – A irretroatividade da norma e a impossibilidade de sobreposição da regra em detrimento de princípios.

Consoante sinteticamente abordado acima, a construção do direito do trabalhador foi alcançada após inúmeros debates e se modelando, ao longo dos anos, a partir do extrato da aplicação mais justa na relação de emprego.

Pela dinâmica que até então havia sido firmada, ao empregado que serviu seu empregador por longos 10 anos, tendo dimensionado o seu orçamento contando com a gratificação, seria justo que fosse conservado o seu padrão remuneratório (que nada fez para perder).

Todavia, a nova redação do artigo 468, §2º, da CLT esvaziou o teor da Súmula 372, I do TST e trouxe o trabalhador novamente a estaca zero neste aspecto.

Em uma análise primária, mister salientar que a gratificação de função tem natureza salarial, na espécie salário-condição, o qual é auferido somente enquanto o obreiro exerce a função que lhe é retribuída pelo plus salarial. Tal entendimento é o que se reflete no dispositivo legal supramencionado.

Não obstante, a imposição da norma comporta adequação no caso concreto, em razão dos princípios elementares que norteiam a relação de trabalho. 

Quando o trabalhador conta com a gratificação por longa data, em razão do desempenho da função gratificada, todos os planejamentos financeiros deste e de sua família passam a vincular-se àquela parcela, oriunda de um cargo que gera uma estabilidade presumida. A interpretação jurisprudencial já estava corretamente concretizada neste sentido.

Assim, não é razoável aceitar que a nova redação dada pela reforma trabalhista possa alcançar um empregado que tenha adquirido o direito à estabilidade financeira antes da vigência da reforma.

Da mesma forma, diferente não seria com àquele que, ainda que não tenha alcançado o requisito temporal, possuía expectativa de atingi-lo, haja vista que encontra-se no curso de uma função gratificada sob a égide da norma mais benéfica.

Trata-se da necessária ponderação da irretroatividade de norma prejudicial ao empregado em observância à segurança jurídica e ao direito adquirido. Afinal, a aplicação de uma nova norma que reflita negativamente nas vantagens do trabalhador só poderia atingir, no máximo, contratos originados após a vigência da reforma.

Portanto, certo é que a nova norma não pode retroagir a uma relação jurídica pretérita, devendo ser respeitadas as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada, sob pena de violação ao direito adquirido e ato jurídico perfeito.

Neste sentido, o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prevê que "A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.". Ademais, o §1º desse mesmo dispositivo preconiza: "Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.". g.n.

Dessa forma, não sendo possível a retroatividade da norma, a nova lei não poderá regular situação já consumada, em observância ao princípio da irretroatividade das leis previsto em nossa Constituição, artigo 5º, inciso XXXVI, in verbis: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

In casu, aplica-se a regra de direito intertemporal Tempus Regis Actum, segundo a qual a lei que rege o fato é a lei vigente ao tempo do fato. Isto é, todos os direitos praticados, adquiridos e usufruídos com arrimo na lei anterior, são regidos pela lei anterior, que era a lei vigente à época.

Assim, as inovações trazidas pela reforma trabalhista não podem atingir atos e fatos de contratos antigos.

De outro lado, ainda assim, não se pode olvidar que a novidade legislativa ofende princípios constitucionais do direito do trabalho, de modo que estamos diante de um conflito direto entre regra e princípios.

Vale aqui uma breve exposição da teoria normativa-material de Alexy que defende que toda norma é regra ou princípio, sendo sua diferença unicamente qualitativa (normativa), fundada no modo de resolução de conflitos.

O princípio é norma ordenadora “de que algo se realize na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”5. É um mandado de otimização para ponderação entre a possibilidade jurídica e a possibilidade real de adequação do fato à norma.

Ainda, Mello6 ensina que princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua perfeita compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário.

Quanto às regras, elas são normas a serem cumpridas. O único questionamento que pode ser feito quanto a elas é se aquela determinada norma se aplica ou não ao caso concreto.

A grande diferença entre ambos, portanto, é que as regras proporcionam o critério das ações, dizendo o que se deve ou não fazer em situações específicas, enquanto os princípios proporcionam critérios para o posicionamento diante de uma situação concreta. Aos princípios só se pode dar um sentido operativo, aplicando-os a um caso concreto.

Na hipótese de nos depararmos com um conflito entre regra e princípio, este sempre deve prevalecer, sobretudo tratando-se de princípio constitucional.

No caso sob análise, há exatamente uma colisão entre a regra disposta no §2º do artigo 468 da CLT e os princípios constitucionais da irredutibilidade salarial (artigo 7º, VI, da Constituição), da proteção da confiança e da segurança jurídica (artigos 1º e 5º, XXXVI, da Constituição) e da boa-fé objetiva (artigos 1º, III, e 3º, I, da Constituição), estes que, por sua vez, embasaram a aplicabilidade do princípio da estabilidade financeira.

A reforma em questão configura nítida permissão à redução salarial e, portanto, contraria, também, a jurisprudência consolidada pelo STF, que declarou a constitucionalidade do instituto da estabilidade financeira. Isto, pois, em torno do tema da “irredutibilidade salarial” e do princípio da “estabilidade financeira”, o Supremo Tribunal Federal assentou jurisprudência acerca da impossibilidade de redução salarial, ainda quando modificado o regime jurídico:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. ESTABILIDADE FINANCEIRA. DIREITO ADQUIRIDO AOS CRITÉRIOS DE REAJUSTE DA VANTAGEM PESSOAL INCORPORADA. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES. O Supremo Tribunal Federal, após reconhecida a repercussão geral da matéria no RE 563.965-RG, sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia, reafirmou a jurisprudência da Corte no sentido da constitucionalidade do instituto da estabilidade financeira. [...]. (AI 675.287-AgR, Min. Rel. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 10.02.2015) g.n.

“[...] 3. É pacífica a jurisprudência desta Corte no sentido de que, embora constitucional o instituto da estabilidade financeira, não há direito adquirido a regime jurídico, ficando assegurada, entretanto, a irredutibilidade de vencimentos. 4. Rever o entendimento assentado no Tribunal de origem quanto à ocorrência de redução nos proventos do servidor demandaria a análise das Leis estaduais nºs 11.17186 e 12.386/94, e dos fatos e das provas dos autos. Incidência das Súmulas nºs 280 e 279/STF.” (RE 227755 AgR / CE - CearáAG.REG. no recurso extraordinário Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI Julgamento:  02/10/2012. Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação Acórdão eletrônico DJe-208 DIVULG 22-10-2012 PUBLIC 23-10-2012)

A doutrina, no mesmo sentido, destaca o traço de inconstitucionalidade da norma:

"A retirada da gratificação ao cabo de 10 anos representa efetiva redução salarial. O salário-condição tornou-se salário-base. Isso é irrespondível. Como a Súmula 372 do TST foi calcada no princípio da irredutibilidade salarial e como esse princípio está constitucionalizado, o caminho não tem volta. Mera alteração na redação da lei ordinária, propondo que o caso seja considerado de ausência de direito adquirido, não é o bastante para suplantar a CF/88. Há semente de inconstitucionalidade no art. 468, § 2º, portanto."7

Assim, diante das ponderações realizadas, conclui-se que a nova regra sucumbe diante da colisão com os princípios em tela, de modo que deve ser afastada, sob pena de perpetuarem os efeitos nefastos pretendidos por ela.

Em um mercado de trabalho tão instável e num cenário nacional cheio de rupturas nos direitos sociais arduamente conquistados, a completa supressão da gratificação de função, sem a sua incorporação salarial para todos os fins, fere de morte os princípios protetivos do direito laboral.

Cumpre salientar que violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma, porque os princípios constitucionais são vinculantes e, portanto, desrespeitar uma norma constitucional significa uma ruptura com a própria Constituição.

Frisa-se: no caso de colisão de regra e princípio constitucional, a regra deve ser interpretada conforme a Lei Maior, e se não for possível, deve imperar unicamente o princípio.

Portanto, em que pese a alteração da norma trabalhista, o teor da Súmula 372, I, do TST deve prevalecer, pois está em sintonia com todo arcabouço jurídico que envolve a matéria.

Neste sentido, inclusive, é o Enunciado nº 26 da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho da Anamatra, senão vejamos:

ENUNCIADO 26. REMUNERAÇÃO E PARCELAS INDENIZATÓRIAS: GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO
GRATIFICAÇÃO DE FUNÇÃO. SUPRESSÃO OU REDUÇÃO. LIMITES. LEI 13.467/2017. I - uma vez percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação, tendo em vista os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e segurança jurídica, garantidores da estabilidade financeira. II - mantido o empregado no exercício da função comissionada, não pode o empregador reduzir o valor da gratificação.

A justificativa da comissão que propôs referido enunciado, após longo debate, foi no sentido de que a expressão “independentemente do tempo de exercício da respectiva função” constante do §2º do artigo 468 da CLT contraria o princípio da estabilidade financeira e, como consequência, deve ser interpretado de modo sistemático.

A tradição deste entendimento guarda sintonia com a Constituição da República, em especial com o caput do artigo 7º e inciso VI, bem como com os princípios integrativos do Direito do Trabalho. Deste modo, o entendimento foi de que a dicção da referida Súmula deve ser confirmada diante do princípio da estabilidade financeira que decorre do sistema constitucional de proteção à relação de emprego.

Destarte, de todos os lados, a alteração lesiva incutida no §2º do artigo 468 da CLT é incompatível com carga principiológica que norteia as relações de trabalho, sobretudo com as garantias previstas constitucionalmente, devendo, portanto, ser abstraída quando da subsunção da norma.

V – Considerações finais.

A Lei 13.467/2017, publicada em 14/07/2017 e que passou a vigorar no dia 11/11/2017, alterou mais de uma centena de pontos da CLT e trouxe várias mudanças que afetaram, principalmente, o dia a dia entre empregado e empregador.

Em que pese a necessidade de readequação do direito do trabalho face à realidade contemporânea das relações de emprego, o legislador infraconstitucional acabou por criar normas restritivas de direitos, causando relevante impacto na condição dos trabalhadores.

A alteração significativa aduzida neste estudo, relativa à impossibilidade de incorporação da gratificação de função pelo exercente de cargo de confiança por longa data, afetou uma gama de trabalhadores pelo país afora.

Hodiernamente, diante do pequeno lapso de vigência da norma em comento (aproximadamente oito meses), percebe-se que os magistrados pátrios ainda não possuem um padrão de aplicabilidade no caso concreto, sendo que existem decisões pela aplicação das alterações lesivas a todos os contratos, outras pela subsunção somente aos contratos novos, ou seja, firmados posteriormente à reforma, e outras a favor da manutenção do entendimento sumulado pelo TST, o que gera, naturalmente, temida insegurança jurídica e financeira face à imprevisibilidade do veredito.

Indiretamente, muitas relações de trabalho que se pautam na interpretação do artigo em questão certamente se enfraquecerão, pois a força da segurança socioeconômica gerada pela estabilidade aparentemente não se encontra mais presente nas relações entre empregado-empregador, podendo este último se valer de qualquer motivo, seja ele justo ou não, para reverter o empregado de longa data ao cargo de origem, retirando-lhe a contraprestação.

Todavia, consoante delineado no decorrer deste trabalho, os desdobramentos da nova leitura do §2º do artigo 468 da CLT vão de encontro aos princípios constitucionais que orientam o sistema normativo do direito do trabalho.

A intelecção que respeita os princípios constitucionais norteadores da matéria defende que o funcionário que ficou tanto tempo no cargo, de certa forma, elevou seu patamar financeiro, não podendo, portanto, perder a estabilidade econômica sem que tenha dado causa a isso. Nesta situação, o salário-condição recebido por longa data se converte em salário-base, de modo que a sua supressão passa a ser ilícita, pois caracteriza nítida redução salarial.

Portanto, é evidente que a novidade legislativa em debate não tem espaço no ordenamento jurídico em vigor, cabendo ao judiciário interpretá-la a luz da construção principiológica que equilibra o direito do trabalho.

VI – Referências bibliográficas.

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ARAGÃO, Gerson. Qual a diferença entre regras e princípios? (segundo Robert Alexy). Publicado em: julho de 2015. Disponível em: <https://gersonaragao.jusbrasil.com.br/artigos/215342544/qual-a-diferenca-entre-regras-e-principios-segundo-robert-alexy>. Acesso em: 23 jul. 2018.

BRUXEL, Charles da Costa. Reforma trabalhista: a inconstitucionalidade do fim da incorporação da gratificação de função (Súmula 372 do TST). Publicado em: 27 de junho 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/reforma-trabalhista-a-inconstitucionalidade-do-fim-da-incorporacao-da-gratificacao-de-funcao-sumula-372-do-tst-por-charles-da-costa-bruxel>. Acesso em: 23 jul. 2018.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 11ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2012.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 ed. São Paulo: LTr, 2017.

FERNANDES, Vitor Monaquezi. Reforma trabalhista e o fim da estabilidade financeira dos cargos de confiança. Publicado em: 09 de maio de 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-mai-09/vitor-fernandes-fim-estabilidade-financeira-cargos-confianca>. Acesso em: 24 jul. 2018.

INICIAL, Equipe da Modelo. A redução salarial na reforma trabalhista. Publicado em: fevereiro de 2018. Disponível em: <https://modeloinicial.jusbrasil.com.br/artigos/550330509/a-reducao-salarial-na-reforma-trabalhista>. Acesso em: 20 jul. 2018.

KÖHN, Edgar. A Solução da colisão de princípios e conflito de regras. Publicado em: 12 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/solucao-da-colisao-de-principios-e-conflito-de-regras>. Acesso em: 26 jul. 2018.

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1 Advogado. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

2 Advogada. Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade Escola Paulista de Direito (FACEPD, SP).

3 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 ed. São Paulo: LTr, 2017. 

4 Disponível em: <https://candidovieira.jusbrasil.com.br/artigos/453833863/reforma-trabalhista-fim-da-incorporacao-da-funcao-gratificada>.

5 ALEXY, p. 86-87, Apud CUNHA JÚNIOR, 2012, p. 155.

6 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

7 SILVA, Homero Batista Mateus da, Comentários à Reforma Trabalhista. ed. 2018. E-book, 2018.

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